16/08/2018

Invasão anual aos serviços de urgência



Paulo Andrade 
“ O pessoal das ambulâncias é sempre insuficiente (...) ” Henry Dunant (1828-1910) Filantropo suíço, prémio Nobel da Paz e um dos mentores do serviço de primeiros socorros. 

Entretido nas minhas cogitações, lembrei-me de algo que li num jornal .  Aproximadamente em meados de 2017.  

Esse algo, foi uma notícia referente aos primeiros 11 meses do ano de 2016 !  Segundo esta mesma notícia, no período referido,  entraram nos serviços de urgência(SU) dos hospitais  cerca de 25 milhões de pessoas. Destas ,  a cerca  de  11 milhões de pessoas  foram atribuídas as cores “verde” e “azul”.  

Estas cores representam, precisamente, casos não graves, não emergentes! 

Por outras palavras são casos que...não ganham nada em ir para um  SU . 
Interrogo-me sobre o que levará um país a inscrever, em menos de um  ano,  nos hospitais  um número  de pessoas superior à sua própria população. 25 milhões, no total, sendo que 11 milhões destas penso que provavelmente nem deveriam ter ido para o  hospital. 
Lembrei-me de  fazer algumas comparações .... 
A primeira guerra mundial, que durou cerca de 4 anos, teve cerca de 9 milhões de vítimas, portanto entre mortos e feridos, são pessoas que , a dada altura, precisaram de atendimento médico. A guerra colonial portuguesa, que durou 13 anos, fez cerca de 16.000 vítimas. Assim como o exemplo anterior, estas 16.000 vítimas  necessitaram, nalguma altura do seu percurso da guerra, de assistência médica. As batalhas do dia D, fizeram cerca de 19.000 vítimas, a batalha de Estalinegrado (uma das mais ferrenhas e brutais da 2ª guerra mundial), fez cerca de 2 milhões de vítimas.Poderia dar mais exemplos, mas fico-me por estes!  
Portugal está em paz! Não defrontamos nenhuma guerra , no sentido bélico do termo que possa, nem que seja em imaginação, ser comparada  algum dos exemplos que aqui descrevo.  
E ,mesmo assim, é preciso ter uma imaginação com algum prodígio. 
Em tempo de paz, Portugal consegue colocar nos SU ( Serviço Urgência), 11 milhões de pessoas que provavelmente nem deveriam lá estar! 
Um número superior à nossa própria população. 
Trabalhando no Sistema de Emergência Médica (SIEM), e tendo profundo conhecimento das razões que  habitualmente servem para que uma pessoa seja conduzida ao hospital, se calhar até me espanto como é que o número não é maior! 
Todos os anos, só a nível do número 112, são accionados meios de emergência para mais de 1.200,000 saídas supostamente de emergência, informação constante online

Para que nos situemos em termos de conceitos, porque não significa tudo o mesmo : 
O conceito de emergência médica define , por si só, qualquer situação que, num dado momento, afeta um ser humano colocando em risco eminente a vida. O conceito de urgência define uma situação que, apesar de não representar perigo eminente para a vida, tem que ser resolvida num curto espaço de tempo sob pena de se transformar numa emergência médica! 
Interrogo-me :  
Então mas que andam os portugueses a fazer para que todos dos anos um número equivalente a mais de 10 % da população ,a avaliar pelo número de saídas de meios de emergência, dê entrada nos diversos SU espalhados pelo país ? 
Serão os portugueses um povo assim tão azarado que todos os anos mais de 1 milhão de nós corre risco de vida ou risco imediato de vida ? 
Como e porquê há tanta gente a entrar nos SU todos os anos ?  
Quanto mais gente acede aos SU, mais sobrecarregado fica o sistema de emergência.  
O de dentro e o de fora dos hospitais ! Com todos os custos inerentes a este facto ! 
Sendo, como já escrevi, profissional do sistema e conhecendo algumas das razões que, servindo-me de  Lisboa como exemplo, conduzem a a maior parte das pessoas à urgência de um hospital, de facto, quase que é de pasmar o facto de o número não ser mais alto. 
Os conceitos do que é “emergente” e “urgente” parecem-me claros !   
Mas a prática de quase 12 anos  trabalhar neste sistema é também muito clara, muito professora de rotinas. 
Em Lisboa as razões que ocupam a maior parte da justificação(?) para saídas de ambulâncias de emergência penso que vão  desde o surreal, até ao absurdo . Substantivos que, quando comparados com a rotina diária, comprovam-se insuficientes para qualificar essa mesma rotina. 
Os motivos são reais, ocorrem com uma frequência assustadora e rotineira. 
Alguns do motivos que levam a que se ligue 112 e se provoque a saída de um meio de emergência  ao domicílio, e se proceda ao posterior transporte para um SU, vão desde o  “ chamei-vos porque está muito frio”, até à simulação de desmaios, passando por “doer um dente”, e acabando no “ tenho uma dor aqui porque fui atropelado em...1981” ! 
Pelo meio existem outros motivos que, do meu ponto de vista, são igualmente surreais! 
Mas se a pessoa fizer questão em ir para o hospital, a ambulância tem de a transportar ! 
Entre nós, profissionais do sistema de emergência, discutem-se por vezes percentagens de saídas não necessárias, e motivos de entrada no hospital,  que não justificam, de todo, nem deslocação de meios de emergência, nem o transporte para os SU . São contas que não são difíceis de fazer. Nós é que saímos com os meios, nós é que presenciamos as diversas situações e motivos de ida ao SU, e nós é que assistimos ao que as pessoas nos dão como justificação para ir! 
E sabemos o exagerado número de vezes nas quais este fenómeno ocorre !  
Mesmo podendo haver alguma discordância, a percentagem que se encontra com uma frequência e consenso assustadores é de cerca de  70 % ! Portanto de todas as deslocações e entradas no serviço se urgência, na área da grande Lisboa,  provavelmente cerca de 70% são absolutamente injustificadas.  
O próprio INEM , num cartaz publicitário onde utilizou o jogador brasileiro  Neymar, deixa claro que quase 80 % das chamadas para a linha de emergência, não são emergências. 
Não está em causa nem nunca esteve o critério clínico. Estão sim em causa outros critérios. Nomeadamente o respeito pelos serviços de urgência e , já agora, o simples bom senso! 
Transportes  ao SU, rotineiros, pelo seu enorme número,  sem ser de todo necessário, sobrecarregam o sistema , sobrecarregam profissionais, sobrecarregam hospitais . Aumentando a probabilidade de erro e de insuficiência de meios de emergência caso sejam efetivamente necessários! E são ... 
Esta forma de ser e estar do “sistema” tem custos! Muitos ! 
Quer humanos, quer financeiros ! 
A alguns cidadãos penso que provavelmente custa-lhes... a vida! 
Pelos exemplos que dei ( que constituem apenas uma amostra de motivos , no mínimo, questionáveis), é realmente de estranhar que o número não seja superior. 
Comecei esta minha redação referente a uma lembrança relativa a um facto de 2016. Hoje, em 2018, com 2017 a fazer parte do passado, o assunto que se discute é exatamente o mesmo, porque o problema é exatamente igual a 2016 ! 
Que já era igual a 2015! 
Henry Dunant, nasceu há 190 anos. A sua frase é icónica, por isso a escolhi. Acrescento apenas que , hoje em dia, com o sistema a manter-se a trabalhar da forma que está, não são apenas as ambulâncias que são insuficientes, ou o pessoal com a formação adequada para as tripular. Passam a ser insuficientes hospitais, médicos, enfermeiros, auxiliares de ação médica, administrativos e todos os demais profissionais que dão corpo e vida aos hospitais .