O diferendo ortográfico na língua portuguesa arrasta-se há quase um século. Em 1911 Portugal promoveu unilateralmente uma profunda reforma ortográfica da língua. Fê-la sem consultar o Brasil, que não a adotou. Ao longo de todo o século XX, as várias tentativas de unificação da ortografia do português não tiveram mais do que um êxito limitado.
A discussão sobre a propriedade de uma língua é passional e sem sentido. Não é propriedade de Portugal, nem do Brasil, nem de Angola. Como dizia Fernando Pessoa “a minha pátria é a minha língua”. Portanto, a língua é propriedade dos seus falantes. Pensar doutra forma é colonialismo.
A relutância em aceitar a mudança é normal, em especial em espíritos mais sensíveis e pouco abertos a novos ares, daí as resistências e o combate feroz. Não é apenas na questão da língua. Veja-se o que acontece em qualquer país quando governos pretendem mudar. Foi assim para acabar com o esclavagismo, para acabar com o fumo nos locais interiores, para usar o cinto no automóvel, para implementar a avaliação, etc.
Eu escrevo de modo diferente de Camões e até de Pessoa, e sou português. Se agora, por decreto, fossemos obrigados a escrever com a grafia da época de Camões, caía o Carmo e a Trindade. Eu entendo que é mesmo assim, e não é por razões científicas ou mesmo razoáveis na maioria dos casos. É-se contra, e pronto. É uma chatice ter de mudar. Dá trabalho, faz pensar e é cansativo.
Mas afinal porque é que se discute com tanta paixão, que até pode raiar o xenofobismo? A discussão tem sido tudo, menos serena e racional. Tem sido feita na base do palpitómetro e da rebeldia, porque dá um ar de revolucionário.
O que afinal temos no famigerado acordo, tão benévolo, a meu ver, porque permite tantas duplas grafias?
As alterações mais significativas encontram-se na eliminação das consoantes mudas em Portugal e países luso-africanos, que só simplifica e muito a escrita. Outra alteração significativa corresponde à utilização de letra inicial minúscula nos nomes dos meses, estações do ano e pontos cardeais. Muda-se cerca de 1.6% nos lusófonos e 0.5% no Brasil.
Com efeito, o atual Acordo Ortográfico valoriza o critério fonético (ou da pronúncia), com certo detrimento do critério etimológico. É o critério da pronúncia que dita a supressão gráfica das consoantes mudas, ainda mantidas fora do Brasil, essencialmente por razões etimológicas. E é também o critério da pronúncia que leva a manter um certo número de grafias duplas — caráter e carácter, facto e fato, sumptuoso e suntuoso, etc. — e de dupla acentuação gráfica — económico e econômico, efémero e efêmero, bónus e bônus, bebé e bebê, metro e metrô, etc.
Eis algumas opiniões abalisadas: Fernando Cristóvão, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e membro da Academia das Ciências de Lisboa: "Se Portugal e o Brasil têm direito a ortografias próprias diferentes, porque é que Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor não têm o mesmo direito? E qual a língua de uso internacional que resistiria a oito ortografias diferentes?".
Vital Moreira: "não existe nenhuma razão lógica para que uma mesma língua mantenha tantas divergências ortográficas entre duas normas nacionais, quando elas não correspondem a uma divergência real na sua expressão oral".
O jurista português Pedro Lomba: "havendo uma língua única, devemos perguntar se será sensato insistir numa divisão desnecessária e complicativa das regras ortográficas dos dois países". Mauro de Salles Villar, coautor do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa — "A variedade do português do Brasil e de Portugal é muito aproximada. Não temos razão em ter duas formas oficiais de grafar a língua".
O historiador português Rui Tavares: "é natural que o acordo vá progressivamente entrando nos hábitos de escrita dos portugueses e outros lusófonos, e isto por uma razão que neste momento talvez provoque algum escândalo. Ele, de facto, simplifica-nos a vida. Em Portugal, a grande mudança é a queda das consoantes mudas (…). A partir de agora passa a haver uma regra simples. No momento de escrever, pense-se: eu pronuncio aquele "c"? Se sim, escrevo. Caso contrário, não escrevo. Esta regra vai facilitar a vida a muita gente no momento da escrita (…). Quando começar a ser utilizada, pouca gente quererá voltar atrás [e], daqui a cinco anos, ninguém se vai lembrar das razões de tanta resistência. Isto é que é ser prático.
Antes de negar, por negar, aconselho uma leitura sobre o tema, com os prós e contras que a wikipédia consolidou e que é muito valioso em informação, que aqui resumi, por falta de espaço.
Mário Russo
A discussão sobre a propriedade de uma língua é passional e sem sentido. Não é propriedade de Portugal, nem do Brasil, nem de Angola. Como dizia Fernando Pessoa “a minha pátria é a minha língua”. Portanto, a língua é propriedade dos seus falantes. Pensar doutra forma é colonialismo.
A relutância em aceitar a mudança é normal, em especial em espíritos mais sensíveis e pouco abertos a novos ares, daí as resistências e o combate feroz. Não é apenas na questão da língua. Veja-se o que acontece em qualquer país quando governos pretendem mudar. Foi assim para acabar com o esclavagismo, para acabar com o fumo nos locais interiores, para usar o cinto no automóvel, para implementar a avaliação, etc.
Eu escrevo de modo diferente de Camões e até de Pessoa, e sou português. Se agora, por decreto, fossemos obrigados a escrever com a grafia da época de Camões, caía o Carmo e a Trindade. Eu entendo que é mesmo assim, e não é por razões científicas ou mesmo razoáveis na maioria dos casos. É-se contra, e pronto. É uma chatice ter de mudar. Dá trabalho, faz pensar e é cansativo.
Mas afinal porque é que se discute com tanta paixão, que até pode raiar o xenofobismo? A discussão tem sido tudo, menos serena e racional. Tem sido feita na base do palpitómetro e da rebeldia, porque dá um ar de revolucionário.
O que afinal temos no famigerado acordo, tão benévolo, a meu ver, porque permite tantas duplas grafias?
As alterações mais significativas encontram-se na eliminação das consoantes mudas em Portugal e países luso-africanos, que só simplifica e muito a escrita. Outra alteração significativa corresponde à utilização de letra inicial minúscula nos nomes dos meses, estações do ano e pontos cardeais. Muda-se cerca de 1.6% nos lusófonos e 0.5% no Brasil.
Com efeito, o atual Acordo Ortográfico valoriza o critério fonético (ou da pronúncia), com certo detrimento do critério etimológico. É o critério da pronúncia que dita a supressão gráfica das consoantes mudas, ainda mantidas fora do Brasil, essencialmente por razões etimológicas. E é também o critério da pronúncia que leva a manter um certo número de grafias duplas — caráter e carácter, facto e fato, sumptuoso e suntuoso, etc. — e de dupla acentuação gráfica — económico e econômico, efémero e efêmero, bónus e bônus, bebé e bebê, metro e metrô, etc.
Eis algumas opiniões abalisadas: Fernando Cristóvão, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e membro da Academia das Ciências de Lisboa: "Se Portugal e o Brasil têm direito a ortografias próprias diferentes, porque é que Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor não têm o mesmo direito? E qual a língua de uso internacional que resistiria a oito ortografias diferentes?".
Vital Moreira: "não existe nenhuma razão lógica para que uma mesma língua mantenha tantas divergências ortográficas entre duas normas nacionais, quando elas não correspondem a uma divergência real na sua expressão oral".
O jurista português Pedro Lomba: "havendo uma língua única, devemos perguntar se será sensato insistir numa divisão desnecessária e complicativa das regras ortográficas dos dois países". Mauro de Salles Villar, coautor do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa — "A variedade do português do Brasil e de Portugal é muito aproximada. Não temos razão em ter duas formas oficiais de grafar a língua".
O historiador português Rui Tavares: "é natural que o acordo vá progressivamente entrando nos hábitos de escrita dos portugueses e outros lusófonos, e isto por uma razão que neste momento talvez provoque algum escândalo. Ele, de facto, simplifica-nos a vida. Em Portugal, a grande mudança é a queda das consoantes mudas (…). A partir de agora passa a haver uma regra simples. No momento de escrever, pense-se: eu pronuncio aquele "c"? Se sim, escrevo. Caso contrário, não escrevo. Esta regra vai facilitar a vida a muita gente no momento da escrita (…). Quando começar a ser utilizada, pouca gente quererá voltar atrás [e], daqui a cinco anos, ninguém se vai lembrar das razões de tanta resistência. Isto é que é ser prático.
Antes de negar, por negar, aconselho uma leitura sobre o tema, com os prós e contras que a wikipédia consolidou e que é muito valioso em informação, que aqui resumi, por falta de espaço.
Mário Russo