25/04/2009

Cultura: 0,4% um orçamento para a ignorância


O documento publicado no DN de passada quarta-feira, 25.Março, da autoria de Manuel Maria Carrilho, atira para o centro da arena política talvez a mais avessa e ausente das áreas da presente legislatura: a Cultura. E fá-lo no melhor dos momentos, fornecendo a última oportunidade ao PS para se redimir das más práticas vigentes nesta matéria. O período pré-eleitoral é a única altura do calendário político-partidário em que é possível inverter a tendência hegemónica que o sistema possui para tornar assépticos os programas de governo que em breve irão a votos. Durante três anos, os partidos, mormente quando detentores de maiorias absolutas, só ouvem os seus próprios umbigos. Já a oposição, obcecada com marcar o partido no poder, vagueia a reboques hertzianos pelos assuntos do momento que lhe garantam algum espaço nos tele-jornais. Nem para uns, nem para outros, a Cultura foi, jamais, sequer um assunto. E esta é uma infeliz realidade porque mostra cruamente que este sector não é mais do que, para a maioria da classe política, uma espécie de chantilly com que cobrem o miolo daquilo que consideram as “prioridades”. Noutras palavras: não havendo estratégia para a Cultura, não há qualquer estratégia de país.

Ora, se há uma área de absoluta prioridade estratégica que é, pela essência, forte, determinante e geradora de riqueza para um crescimento homogéneo e auto-sustentável do país, essa área é a Cultura. Da conservação do património à rede nacional de bibliotecas, da rede de teatros ao incentivo à criação ou ao aproveitamento das novas tecnologias criativas, a Cultura fomenta a descentralização, o enriquecimento e enobrecimento das populações, a cada vez mais crescente indústria do turismo cultural, a criação real de postos de trabalho, mas fundamentalmente promove um sentimento de identidade, de orgulho e pertença a essa multiplicidade una chamada Portugal. A Cultura é, para além do motor de múltiplas actividades produtivas, um dos mais poderosos meios de criação de riqueza porque assenta na premissa da criatividade, cuja matéria prima é o imaterial, o impalpável, o conhecimento, o sonho, a imaginação. E Portugal sempre foi, neste capítulo, um dos maiores produtores de sinergias culturais e científicas com as quais contaminou a Europa que hoje conhecemos. A internacionalização do país enquanto marca económica envolverá sempre a sua dimensão e capacidade criativa. A exemplo de muitos outros países europeus, dos quais conhecemos bem melhor o cinema, a música, a arquitectura, o património, do que sapatos, queijos ou bancos, Portugal tem que saber exportar a sua maior e única exclusiva riqueza: a Alma. E não falo de Fado, que tão bem serviu, e continua a servir, de exemplo. Não chega.


Nem conseguirá muito mais do que ser um dos retratos estereotipados da nacional multiplicidade. Falo da modernidade com que definimos a excelência da nossa escola arquitectónica, do teatro, da pintura, da literatura, esse meio excelso com que temos cativado o mundo, do imenso, único e disperso espólio arqueológico, patrimonial e paisagístico, da indústria musical que, em contra-corrente, se manifesta como das mais activas e produtivas do velho continente, enfim de tantas outras frentes que contrariem a imagem passadista com que a comunidade internacional ainda nos vê, se é que nos vê. Por mais que queira o governo dizer que não, Portugal é um país invisível, com uma política cultural moribunda, sisuda e insensível que não ajuda a credibilizar as nossas reivindicações políticas no espaço europeu e, muito menos, nos palcos mundiais. Porque quem permite, por exemplo, que construtores civis destruam sistematicamente espólio imperdível que os anos e o Homem construíram, não merece sequer o respeito de se fazer ouvir. Onde está o Ministério da Cultura quando uma das maiores necrópoles megalíticas ainda existentes na Europa, e, sem dúvida, uma das mais importantes, a da Serra de Leomil, nas terras do demo de que Aquilino tanto se orgulhava, é destruída pela indústria das pedreiras que retiram, acoitadas pela noite, o granito ancestral, a memória da nossa memória, para embelezar as casas dos novos-ricos? Saberá a população que lhes estão a retirar, a troco de nada, o próprio futuro? Somos o país da selvajaria, da intriga e do lucro. A Alma é um assunto encerrado. E com estas políticas culturais, podemos encomendar-lhe já o funeral. Em breve todos dançaremos o flamenco sapateando nos escombros do que já fomos.

Tendo sido originalmente elaborado para ser entregue, como foi, à Fundação Res Publica, instituição que o Partido Socialista criou para pretensamente se abrir ao debate externo, o destino do estudo agora tornado público por Manuel Maria Carrilho, foi, presume-se uma vez mais, o arquivo. Este PS não encontra espaço para encarar com seriedade críticas, propostas ou balanços se dissonantes com o discurso oficial, ainda que provenham dos seus próprios pares, como é o caso de Manuel Maria Carrilho. Mas um documento como este, com uma aguda e profunda análise sobre o estado da Cultura em Portugal, é mesmo para levar a sério, tendo conseguido desde já, um dos seus principais objectivos: recolocar no mapa político, com a dignidade de outras matérias não menos prementes, o debate rigoroso sobre questões culturais a necessitar de urgentíssima atenção. Manuel Maria Carrilho, que, enquanto Ministro da Cultura, tornou efectiva uma política cultural com obra, estratégia e visibilidade, ainda hoje referenciais obrigatórios na área, tem razão ao afirmar que a presente legislatura perdeu a oportunidade de marcar a diferença em relação aos governos que o precederem. Não cumpridas as promessas para o sector, este governo dotou o Ministério da Cultura com o mais baixo orçamento de sempre: 0,4%. O Ministro sabe que esta verba desonra agentes culturais e o próprio. Este não é o preço da cultura, mas parte dos custos da ignorância. A factura já chegou e tem um nome: atraso estrutural. Portugal merece mais e melhor. Um orçamento de, pelo menos, 1% para o sector, como reivindicado por tantos, um novo Ministro da Cultura, e novas e corajosas políticas para a área respectiva. Mas não passará tudo isto pela mudança pura e simples do Primeiro-Ministro?

Pedro Abrunhosa