13/05/2008

CORTINA DE VOAL



Guacira Maciel



Estou no trabalho. São 09h30min de uma luminosa manhã de segunda feira. Me sinto extraordinária e deliciosamente fora do contexto. Extasiada, leio as gostosas crônicas de Ferreira Gullar. Fantástico! mas preciso emitir um parecer técnico...
Aqui, algumas presenças são por demais terrenas, sólidas e ácidas e subservientes...
Ouço fragmentos de conversas sobre uma educação que não acontece nas nossas escolas: ...formação didática... forma metodológica... os professores.. . projetos...
Na verdade, me pergunto o porquê disso tudo; eu mesma, o que faço, se nada posso fazer acontecer?...
O dia está maravilhoso; ainda sendo segunda feira de manhã, de um dia de inverno na Bahia. O sol brilha em suave sobre nossas brancas mesas de trabalho, através dos rasgões no papel pardo, que faz às vezes de cortina, para um contemporâneo janelão envidraçado - que permite a visão de um mar maravilhoso, com nuances opalescentes e perfeitamente integrado ao verde da vegetação - dilatando meu horizonte. Pensei que nem cortinas merecemos... ainda que aquelas, tesas, de escritório...
Por que pensei em esvoaçantes cortinas de linho branco ou voal? e por que numa varanda em frente ao mar, filtrando a maresia e o sol acidular, que incendeia a vida e arde nas costas do nosso litoral e nas nossas próprias costas? qualquer praia... poderia ser Sítio do Conde, Aleluia ou Costa do Sauipe, desde que fora do eixo dos resorts e hotéis de luxo. Eles violentam o equilíbrio da ecologia que compõe uma cadeia perfeita de vida, filtrando também a beleza, a punjança e o que puro na nossa luxuriante natureza, que em sua perfeição não precisa de retoques.
Uma estrutura maldosa e desumana que engole tudo, como uma gulosa “boca de lobo”, interrompendo o curso da vida... a administração...a mídia, orquestradas por homens... batalhões de homens e mulheres, como formigas tendo que ir a algum lugar... como autômatos com sorrisos plásticos colados à boca; os espíritos aprisionados, insensíveis e estéreis, sem perceber a vida pulsando e, relutante, se esvaindo dos seus corações, roubando a seiva que vaza por seus corpos, cujas cabeças funcionam tão alto, que se fazem ouvir...
Aqui, sinto e ouço o espírito do mundo, teimoso, querendo dizer alguma coisa que já sei e que tento, em vão, esquecer, mas que não posso, porque ele sou eu e é aqui que está a voz, que reconheço, doce, morna e amorosa de antes... isso parece ter sido há um século ou em outra vida...
Meu coração bate tão forte que quase perco o equilíbrio; todo o meu corpo dói pulsando tenso como corda distendida de um instrumento qualquer; meus ouvidos parecem a pele sensível de um tambor e escutam esses batimentos como se estivessem fora de mim; a visão recebe impressões em cascatas vermelhas, azuis e alaranjadas, numa explosão que se assemelha a um ininterrupto bombardeio, em conseqüência da pressão deixada pelo correr veloz do sangue nas minhas artérias; tenho a sensação de vertigem e sugo sofregamente o ar, sem fôlego; como um náufrago, me agarro à tábuas molhadas, ofuscantes e escorregadias, boiando à minha frente, quase impossíveis de serem agarradas... páginas borradas do livro de crônicas aberto sobre a minha mesa branca, inerte, como eu....
E meu olhar, aéreo, despenca sobre uma delas: “... conheci uma mulher que costumava dizer: não há amor que resista ao tanque de lavar...” e pensei, perplexa: não há amor que resista à secura de uma de uma voz que fora doce...
Fragmentos longínquos de conversas voltam aos meus ouvidos: “quando não há afetividade, a pessoa só enxerga as merdas do outro...”.



escritora , poetisa , professora brasileira , frequente no blogue