07/02/2007

PRECISAMOS DE DESCANSO

MANUEL CARVALHO


Seja na democracia, no desenvolvimento ou na autonomização de uma verdadeira sociedade civil, é hábito nosso chegar tarde à História. Com a história da despenalização do aborto, não podia ser diferente. Desfasados do tempo, envolvemo-nos na pré-campanha como se de uma questão de vida ou de morte se tratasse. Batemos e rebatemos argumentos que outros europeus evocaram há 30 ou 40 anos: rediscutimos a moral pública e a liberdade individual, os limites do Estado e a influência da igreja, a biologia e o sistema nacional de saúde, a liberdade e a demagogia, o ser e o não ser. Não nos demos ainda conta de que tudo isto é retro, gasto, velho e relho, como o seria certamente o debate sobre as indulgências que levaram à Reforma, a pureza dos cristãos novos, o saber se a velocidade do vapor faz mal à vista ou se um dia D. Sebastião vai ou não regressar um dia no seu cavalo entre o nevoeiro.
Entre as exclusivas interpretações da vida do “não” e a reclamação do direito exclusivo de as mulheres mandarem na sua barriga dos que apelam ao “sim” sobra uma sensação de vacuidade e de arcaísmo que nem os que dos dois lados se esforçam por encarar racionalmente o problema são capazes de superar. Porque nada disto faz sentido, porque tudo isto deveria ter sido irremediavelmente resolvido há décadas. Perante o atraso, o Referendo parece uma dor que tem se suportar até que a ferida cure. E só curará quando Portugal (ou a Irlanda) deixar de ser uma excepção moralista e radicalmente conservadora, quando o país aceitar que o pretenso determinismo da moral católica não determina nem pode determinar em absoluto o sentido da existência de cidadãos livres e responsáveis no seio de uma sociedade e de um Estado laicos. Apesar do aborto ser um flagelo traumático e de a sua descriminalização implicar sobre ele o olhar frio das leis, a alternativa só pode ser pior.
Mesmo sabendo que haverá sempre quem conteste a realidade nua e crua dos factos, quem persista em recusar a realidade e o presente, confortemo-nos com a ideia que este Referendo pode apagar esta triste manifestação de anacronismo por uns anos. Se sim, seremos ao menos poupados à triste sina de viver dias como estes, em que sentimos no meio de um debate que cruelmente nos mostra como estamos desfasados da História.