24/03/2015

Miguel Cadilhe (Clube dos Pensadores, 16 03 2015, Gaia, texto base da intervenção, somente na parte da democracia)



 
Miguel Cadilhe 
Democracia, “por vezes num segundo se evolam tantos anos”



Talvez estejamos no mais baixo ponto de funcionamento da nossa democracia. Será a ausência do grande reformador o mais sério sintoma, presságio, de uma perturbação funcional da democracia?
1.     Por vezes, a democracia também falha... 

O processo de selecção da democracia deveria conduzir à escolha dos melhores. Por vezes, porém, conduz à escolha dos piores. Por vezes, a democracia escolhe pessoas que não prestam. Como é que a democracia nem sempre distingue, a tempo, e não segrega, os políticos de pouca diligência, de débil carácter, por vezes o puro sacana e velhaco, por vezes o venal? Para mim, isto é quase um mistério.
A democracia deveria ter mecanismos de alerta, e tem, mas funcionam mal e tarde. E por vezes, a democracia afasta os melhores e flagela o mérito, a honra, a rectidão. Por vezes, a democracia guia-se mais pelas belas palavras do que pelas boas ideias.

E, por vezes, fecha os olhos ao nepotismo, oportunismo, facilitismo, e a outras formas de corrupção intelectual ou material.

Por vezes, a democracia embarca em erros e omissões que nos desestruturam, por muitos anos. Por exemplo, tivemos a opção de uma entrada desproporcionada na moeda única. Foi logo no início dos anos 90, quando iniciámos as etapas da “convergência nominal”. Escrevi então várias vezes, como outros fizeram, sobre as nefastas e longas consequências da opção, mas em vão.

Por vezes, a democracia tolera perigosos desvios à ética da responsabilidade de políticos que estão no topo das funções do Estado. Por exemplo, um dos maiores erros dos presidentes da República foi aquele, de 2004, em que o PR concordou que a democracia fosse subalternizada, diria, humilhada, pelo primeiro-ministro que trocou o seu lugar democraticamente eleito pelo lugar de chefe dos eurocratas.

Noutro campo, já não por vezes, mas em predomínio, a democracia cultiva o centralismo e está de costas voltadas para o bom princípio da subsidiariedade política. Somos um dos países de finanças públicas mais centralizadas de toda a UE. Ora, foi sob o manto deste centralismo que ocorreu o histórico colapso das nossas finanças públicas.

2.     Por vezes, a democracia não equaciona “fins e meios”...

Por vezes, a democracia entra em negação e recusa ver a realidade. O exemplo mais flagrante é o da dimensão do Estado e da sua sustentabilidade, ou, por outras palavras, a questão dos “fins” e dos “meios”. Há dez anos escrevi um livro sobre isto e dizia que o abismo estava perto, se não se fizesse a reforma estrutural do Estado. Debalde. O desabamento das finanças públicas e a troika surgiram em 2011, e a austeridade instalou-se por uns anos, que ainda não acabaram. Hoje, o nosso esforço fiscal é dos mais severos da Europa. Mesmo assim, a dívida pública está elevadíssima,  porque, na implacável questão dos “fins” e dos “meios”, estes são sistematicamente inferiores àqueles.
Percorri a constituição em busca da racionalidade dos “meios”, mas nada. A democracia e a constituição sobrecarregam o Estado de “fins” e funções mas, no outro prato da balança que é o das finanças públicas, não encontramos uma única palavra sobre a temperança dos “meios”.

Além disso, por vezes, a democracia convive com monstruosidades do despesismo, como certas obras em auto-estradas demasiado densas, ou certos equipamentos militares de motivação duvidosa, ou o enorme “défice tarifário” das energias, ou a extravagância de diversas PPP, etc. Por vezes, a democracia abre portas a “negócios públicos” que são péssima afectação de recursos do Estado e, pior, são plausível fonte de corrupção ao mais alto nível.

3.     Por vezes, a democracia é tardia...

Regressemos ao início deste escrito. A qualidade das pessoas que andam na política conta muito. Todavia, penso que precisamos de subir bastante mais a montanha e tentar avistar lá de cima o que se passa. Já não é o político A ou B quem avistamos, já não é um Passos ou um Costa, pessoas de bem, o que mais importa. O problema essencial está acima disso.
O que está em causa é a democracia. Como sistema de sistemas (sistema de governo e de separação de poderes; sistema de mais ou menos presidencialismo; sistema eleitoral e sistema de partidos; sistema de instituições da República, etc). Como organização e super-estrutura, como rede de forças endógenas, como esfera de relações e escolhas, de poderes e contra-poderes. Como conceito e matriz constitucional. Como função estabilizadora, mas, por vezes, capaz de destabilizar as coisas a fim de as re-estabilizar noutro equilíbrio...
Não vou falar em eficiência no sentido económico do termo, claro que não vou. Mas, no fundo, do que se trata é de uma espécie de eficiência da democracia, no sentido mais filosófico e qualitativo da expressão.  
E chegamos ao âmago. Como hei-de compreender, nestes tempos da democracia, a absoluta ausência de um grande reformador? Como hei-de explicar, do ponto de vista do bom funcionamento da democracia, o quase “grau zero” de autêntico reformismo do Estado? Pois, pergunto, não foram estes quatro anos, em quatro decénios da democracia, a maior oportunidade reformista e o melhor ensejo social e político para chegarmos à solução estrutural da equação dos “meios” e dos “fins”, de que tanto necessitamos? Não foi este o tempo mais propício para a democracia gerar a aparição do grande reformador?
Lamento dizê-lo, uma democracia que deste modo se desperdiça não pode estar bem. Tem dentro de si um “mal ruim”, como se diz em bom pleonasmo popular. Desse mal ruim, provavelmente, as eleições de 2015 nada vão tratar e resolver, infelizmente. O que é grave e muito delicado. Sinto, como outros sentem, crescentes preocupações sobre a governabilidade da nossa democracia, embora acredite que a democracia também contenha, em si, sementes de regeneração. Só que, por vezes, é tardia, “por vezes ah por vezes num segundo se evolam tantos anos”, veio-me à lembrança o belo poema de David Mourão-Ferreira.