Mário Russo
O aborto inscreve-se num quadro mais vasto de questões que se colocam aos portugueses há mais de 30 anos: que sociedade desejamos ser no futuro e como consegui-lo. Transcende, por isso, à mera questão moral, religiosa, jurídica e criminal em que tem aflorado o debate passional e dogmático. É uma oportunidade perdida desejar-se apenas a justa despenalização da mulher (porque ainda temos uma lei ridícula forjada nas catacumbas da idade média). Não se discute a razão profunda do porquê de tantos abortos, de tantos casais que querem filhos e evitam-nos por questões financeiras. Nenhuma mulher deseja passar pelo sacrifício do aborto, porque não é nenhum acto lúdico. Certamente desejamos uma sociedade justa e responsável. Porém, o sim ao aborto sem nenhumas consequências é uma forma de desresponsabilização dos cidadãos e do Estado, numa sociedade civilizada do século XXI com informação mais que suficiente sobre a contracepção. Imputar ignorância, a ponto de deixar que o processo reprodutivo avance para provocar uma interrupção forçada da gravidez é que é criminoso. O normal é assumir a sexualidade e as suas consequências tal como qualquer outra responsabilidade intrínseca ao ser humano. Os portugueses devem assumir a sexualidade sem tabus e com responsabilidade. O Estado não se deve imiscuir em nenhum momento das opções sexuais dos portugueses, nem antes, nem durante e nem depois. Apenas velar para que o aborto voluntário respeite prazos legais. O Estado tem de garantir informação e educação sexual necessária. Deve solidarizar-se com quem, comprovada e justificadamente, não pode pagar este acto médico. O Estado deve garantir que famílias carenciadas possam sustentar mais “uma boca” em condições compatíveis com a dignidade humana. Deve incentivar a fecundidade e não o contrário. A pergunta deveria ser outra: “Concorda que a decisão sobre o destino de uma gravidez até às 10 semanas seja unicamente uma responsabilidade íntima assumida em toda a dimensão pelo casal/família?” Esta pergunta resolveria o problema da penalização injusta da mulher e ao mesmo tempo transferia a justa responsabilidade para quem tomou a decisão, salvaguardando o Estado para tomar para si o apoio efectivo à vida. Do ponto de vista prático, voto sim unicamente pela MULHER, que é quem menos culpa tem em todo o “dossier”. Voto sim por razões de reposição da justiça. Porém, temos de acordar para uma realidade nua e crua, com fundadas razões sócio-económicas e educacionais, que merecem uma profunda reflexão e consequentes terapias, e não apenas ficar-se com a consciência tranquila por ter votado num referendo que termina com uma injusta penalização da mulher.
engenheiro e membro do clube