13/05/2019

“Tá parado”




Paulo Andrade 
                                  “ Temam menos a morte, e mais a vida insuficiente” Bertolt Brecht , dramaturgo alemão  (1898-1956) 

Já perdi a conta a quantidade de vezes que, ao longo dos meus anos de emergência médica ouvi (e disse) esta frase :  “ ‘ Tá parado” ! 
Na gíria da emergência médica esta frase significa que o coração de alguém parou. Sem socorro esta situação corresponde a mais de ¾ do caminho percorrido para ...a morte efetiva  ! 
Não sou lamechas nem tenho feitio para o ser. Mas  sou forçado a admitir que, por vezes, há situações e cenários que nos fazem refletir. E, não raras vezes, a pessoa dona do coração que acabou de parar, estava a falar comigo. A queixar-se das maleitas, do tempo , ou...da família e de como não tinha conseguido resolver um qualquer problema que a atormentava.  
Não raras vezes essa pessoa diz-me  “nestes últimos dias não tenho andado bem”.  
Sente-se, de alguma forma, diferente do que  o seu habitual.  
Em menos de um segundo o olhar congela, fixa-se na minha cara, vaza-se de objetivo, a boca cala-se ... ! 
” ´ Tá parado” !  
A célebre frase que titula esta minha divagação.  
Para muitos é a derradeira janela que se fecha. Para outros....é a janela que, não se encontrando totalmente fechada, também não está “escancarada” á espera de mais um “é para depois” ! 
Para estes quem sabe os antigos egípcios tinham razão no que é relativo ao julgamento de Osíris. Se calhar, nesta janela entreaberta, o “would be” defunto é obrigado , no outro lado, a pedir a sua clemência, o seu coração é pesado e o seu peso comparado com uma pena de avestruz. Se pesar mais do que a dita pena, pertencente à avestruz da deusa “Maet”, o coração é devorado por ” Ammut”. A personagem com  cabeça de crocodilo. Se pesar menos,  o coração é considerado “puro”, e o pedido de clemência deste “would be” defunto é aceite. 
Todo este ritual é presenciado e dirigido por Anúbis, o deus protetor dos mortos.  
Há quem acredite que possa ser este processo, ou outro semelhante,  o responsável por todos os que “lá estiveram”, mas voltaram. Talvez o seu coração seja afinal uma pluma quando comparado com a tal pena de avestruz. Para outros....o seu coração 
pesava demais e seguiram o julgamento eterno, sem direito a clemência nem a “segundas “ oportunidades. E outros há ainda que vagueiam no limbo sem destino definido. 
Não sei. Para um absoluto não crente, como eu, tudo isto não passa de uma rica mitologia difundida por alguém com muita imaginação. Para crentes tudo isto fará sentido e representará a “última realidade” do ser humano.  
Para uns ou outros existe algo verdadeiramente incontornável .... olhar de “split second” da pessoa, quando “ela “ chega.  Ela...a senhora da foice ! 
Asseguro-vos que é um olhar que não dá para esquecer.  
Quando assisto a este olhar, e me apercebo que é mais uma vítima do  “ ‘tá parado”, começo a interrogar-me.... quantas coisas teria este ser humano feito diferente ? Quantas vezes disse “é para depois” ou, como ocorre em muitos casos, interrogo-me “ o que fez este ser para terminar assim?” . 
O  “eu”, o “consciente” são produtos da fisiologia cerebral . Só existem enquanto existir cérebro, ou melhor dizendo, córtex. Quando este funciona mal, ou nem funciona ,estas entidades perdem-se em dimensões, para mim, desconhecidas. 
Quando este “ ´tá parado”, surge em crianças.... ecoam muitas perguntas no cérebro. E, naturalmente, o terrível sentimento de injustiça. Uma criança morrer sem sequer ter oportunidade de fazer, de ser...enfim !  
É demasiado brusco , e nada inteligível. Ultrapassa os limites da racionalidade. Mas...também para as crianças que são vítimas do “ ‘tá parado”, quem sabe se não as aguarda algo singelo e doce  do “outro lado” ?  
Não creio! Mas se quisesse acreditar nisso teria toda a liberdade para o fazer . 
Costumo dizer que, na minha opinião, a religião e as divindades a esta associadas, são criações do ser humano porque lhe assusta a ideia de estar “só” na imensidão do universo e no assombroso limite da realidade conhecida enquanto “eu”, enquanto “ser consciente”.  
Situações houve que o “´tá parado”, teve final feliz.  
Muito feliz mesmo.  
Entre muitos exemplos que vos podia deixar,  lembro-me de um em particular....!  
Um senhor, à altura com 42 anos, enfartou à minha frente. E, quase ato contínuo, vi o tal olhar na minha direção a fixar-se na minha cara, a vazar-se de objetivo. Pensei “vai parar” e...ato contínuo afirmei o rotineiro  “ ´tá parado” ! 
 Manobras de reanimação a iniciar, protocolos a atuar e, escassos minutos depois, como que um sopro a entrar, este senhor levanta a cabeça, dirige o olhar e pergunta “ o que aconteceu?”   
Este senhor.... passou com sucesso e distinção o julgamento de Osíris. Apesar de ter um dos principais vasos do coração entupido, o que causou o enfarte, este senhor saiu vitorioso. Uma vitória sem limites, e apenas compreendida pela família, pelos profissionais de emergência médica e, naturalmente, por ele. 
Algum tempo depois deslocou-se ao meu local de trabalho para me agradecer.E aos colegas que , nessa altura do “quase”, estavam comigo e contribuíram para o manter por cá!  Esses colegas que comigo fizeram uma equipa que se recusou a deixar que um vaso sanguíneo entupido, teimoso e ofendido , levasse a melhor. 
Para este senhor, o “’tá parado” foi, felizmente, sinónimo de mais umas quantas oportunidades de dizer “ é para depois”, ou “amanhã trato disso”  ! 
Para outros é sinónimo de um”julgamento de Osíris” e da sua extinção enquanto personalidade e pessoa.  
Entre uns e outros.... estão os profissionais da emergência médica, com o seu habitual “’ tá parado” e reinício infinito de um ciclo dos mais nobres que conheço....o ciclo que contribui para salvar vidas!  
Continuarei a dizer, eventualmente, “ ‘ tá parado”, até que um dia , quem sabe, alguém o dirá referindo-se a mim! 
É das coisas mais certas ( e certeiras) que temos como seres humanos....  
Num momento  deixará de haver “amanhã” !