A acção de luta que consistiu em cantar Grândola Vila
Morena no Parlamento foi inteligente. Teve uma subtileza cortante que é
rara neste tipo de acções – e em Portugal, onde sempre fomos mais dados à
manifestação, expressa e reiterada, do óbvio (veja-se o humor, que felizmente a
invasão de programas televisivos anglo-saxónicos tem vindo a refinar). Os
mestres-cantores (até Hans Sachs concordaria que eles cantaram bem) da Assembleia
foram mesmo ao ponto de não resistir às ordens de expulsão. Evidentemente,
tratava-se de profissionais conscientes de que a imagem da dignidade ofendida
possui mais força do que a da arruaça. Após esse momento, com a contradição de
ter nascido para exigir o que os cantores da Assembleia manifestamente tiveram
afastada por inconveniente (nuns casos) e falta de memória (noutros),
Grândola Vila Morena tinha caminho aberto para se tornar no hino da
actual contestação, ocupando o posto onde alguns tentaram há uns tempos colocar
um débil tema dos Deolinda. Havia dois tipos de risco, o do excesso de exposição
(semanas a ouvir gente nos mais diversos cantos do país entoando Grândola
Vila Morena perante membros do governo era capaz de se tornar tão
repetitivo que o efeito contestatório se diluiria) e o de alguém utilizar a
canção como base de partida para acções violentas, mas cantar Grândola Vila
Morena poderia de facto constituir-se numa forma ao mesmo tempo elegante e
acerada de mostrar desagrado – bem como de disfarçar a míngua de ideias – a que
alguns membros do governo reagiriam certamente pior do que outros.
Isto ainda é possível mas o segundo risco concretizou-se depressa. O modo
como o tema foi ontem usado em jeito de preâmbulo para berros e
insultos contra Miguel Relvas prejudica desde já a sua futura utilização.
Goste-se ou não de Relvas (e, repetindo-me porque há sempre quem apenas lembre
as partes que lhe fortalecem as ideias feitas, eu considero a reforma do mapa
autárquico insuficiente, a não-solução do caso RTP desapontante, as aparições
dele em processos que não lhe deviam dizer respeito preocupante e a sua
permanência no governo após as notícias sobre a licenciatura inaceitável), por
contraponto à histeria ululante dos manifestantes, ele pareceu sensato e
ponderado. Aguentou, tentou responder e só cometeu o erro de, logo no início, se
juntar ao coro. Percebe-se a ideia (era uma forma de dizer: posso cantar a
Grândola Vila Morena porque sou tão democrata como vocês) mas da atitude
transpareceu nervosismo e arrogância. Precisamente o tipo de hipótese a que me
referia no final do parágrafo anterior. Tivessem os manifestantes ficado por aí,
Relvas seria hoje alvo de chacota generalizada e eu não estaria a escrever este
post. Mas os manifestantes continuaram. Partiram para os gritos e para
os insultos. E Miguel Relvas, encurralado, manteve assinalável serenidade,
tentou responder às perguntas que, na verdade, não o eram, e deixou bem visível
(para quem quiser ver) como a berraria não equivale a ideias nem, muito menos, a
soluções. Cometeu um segundo erro, já à saída, mas foi ligeiro: assediado pelos
repórteres, tentou passar a mensagem de que a noite fora normal. Não fora e
pretendê-lo apenas revelou insegurança. Foi como se dissesse: está tudo bem,
nada disto põe em causa a continuidade do governo.
Compreensível mas desnecessário e, no limite, até contraproducente. Quanto a
Grândola Vila Morena, ninguém terá dúvidas de que, agora que a moda se
instalou, será novamente cantada em breve, algures no país ou mesmo no
estrangeiro. Resta saber se de forma a aumentar-lhe, se a diminuir-lhe os
efeitos.
Duas notas finais: quem acha os acontecimentos de ontem um modo adequado de
contestar o governo e não somente o ministro Relvas, é favor imaginar a grávida
Assunção Cristas no lugar dele; e trata-se de uma melhoria significativa em
relação ao passado recente que as pessoas insatisfeitas consigam entrar nos
locais onde os governantes se encontram e que, aparentemente, a polícia ainda
não tenha invadido a sede de qualquer sindicato.
JAA ( Blogue Delito de Opinião)