25/07/2009

A MINISTRA


Francisco Azevedo Brandão

O professor pegou no livro que tinha comprado na véspera na FNAC e dirigiu-se, como fazia todos os fins da tarde, desde que se aposentara, para o cadeirão almofadado que sua mulher colocava na varanda à sombra de um vistoso guarda-sol de pano vermelho. Sentou-se, olhou a capa do livro e leu: Miguel Real», o autor, e, em letras garrafais o título «A MINISTRA», com o subtítulo »Subir na vida está-lhe no sangue.

A sua ambição ? Ser ministra». A seguir virou o livro e na contracapa leu em voz alta, como costumava fazer nas suas aulas de Literatura Portuguesa, cumprindo, como então, as boas regras da oratória, respeitando os pontos e as vírgulas, as pausas e os parágrafos, com o prazer que sempre sentia ao deleitar os seus alunos e a si próprio com as páginas vivas e talentosas dos grandes mestres da língua portuguesa: «Neste novo texto retrata: uma mulher seca, que nunca conheceu o amor, de passado trágico e futuro marcado pelo desejo de auto-afirmação; uma mulher de mentalidade despótica, adversa à espiritualidade dos valores, crente de que a única dimensão do bem reside na sua utilidade social; uma mulher, cuja especialização académica consiste na manipulação de estatísticas, moldando a realidade à medida dos seus interesses; uma mulher que usa o trabalho, não como forma de realização, mas como modo e exaltação do poder próprio, criando, não o respeito, mas o medo em redor; uma mulher ensimesmada, arrogante, feia e triste, que ama a solidão e despreza os homens; uma mulher autoritária e severa consigo própria, imune ao princípio da tolerância; uma mulher que ambiciona ser ministra.

Sê-lo-á?». Chegado aqui, o professor calou-se, meditou um pouco e exclamou em voz alta: «Eu conheço esta mulher, mas não me lembro quem é!». A resposta veio, rápida e inesperada, da varanda do lado, numa voz de falsete e algo irreverente: «Ò palerma, é a Maria de Lurdes!», e repetiu , «Ó palerma é a Maria de Lurdes!». Era o grito do papagaio da varanda do 2.º esquerdo, propriedade da D. Josefina, mulher quarentona, mas ainda formosa, divorciada há dois anos, com meia-dúzia de amigos que a visitavam, cada um por sua vez. Era ela, que todos os dias colocava a gaiola na varanda com o papagaio e ali o deixava ficar de manhã até ao anoitecer, a insultar com os mais soezes e indecentes impropérios os vizinhos e a quem passava, lá em baixo, na rua. O professor, que o cumprimentava todas as manhãs com um «bom dia papagaio loiro!», era o mais poupado na linguagem depravada do raio do papagaio, pois, apenas o chamava de «palerma», «trinca-espinhas» e «sabichão». Em pior situação ficavam os outros vizinhos:ao do 2. andar direito, um homem de cerca de trinta anos, de trejeitos amaricados, gritava-lhe aos ouvidos«Olá, paneleiro!». À jovem que vivia sozinha no 2-º esquerdo, a Lolita, gritava-lhe, sem pudor: «Olá putinha barata!».

Enfim, era o papagaio mais malcriado e grosseiro que o o professor algum dia tinha conhecido. Era uma vergonha para toda a vizinhança. A polícia, que era muitas vezes chamada, nunca resolveu a situação. Estranhamente nesse dia, o papagaio mantivera-se todo o dia em silêncio até ao momento em que o professor tinha lançado a pergunta e ele, acordando da letargia em que estava prostrado, respondera desabridamente daquela maneira. Depois, remeteu-se novamente a um silêncio estranho. No dia seguinte, o professor chegou à varanda, olhou para a varanda da vizinha e lá estava a gaiola dependura num arame, mas não via o papagaio.

Abeirou-se mais de perto e então é que viu o papagaio deitado de barriga para o ar e com os olhos fechados. Estava morto. O professor pensou: «foi vingança da ministra, pela língua viperina e mexeriqueira do papagaio».