Manuel Maria Carrilho
A vitalidade democrática de uma sociedade avalia-se por muitos factores. Um dos mais significativos é o da existência (ou não) de debates públicos sobre os seus problemas e os seus projectos, seja por iniciativa dos partidos, de instituições da mais diversa natureza ou, simplesmente, da sociedade civil.Este factor é, na sociedade portuguesa, um factor crítico, tanto pela qualidade como pela quantidade dos seus debates, que não tendo nunca sido grandes, têm nos últimos anos vindo a decrescer de modo significativo. O Clube dos Pensadores, animado pelo biólogo Joaquim Jorge, tem sido uma das excepções a este estado de coisas. Foi pois com prazer que aceitei o convite para, no sábado passado, animar um debate sobre alguns desafios que hoje enfrentamos, nomeadamente no que se refere à relação da política com os valores, com os partidos e com os cidadãos. É um roteiro abreviado desse debate que aqui deixo, destacando alguns dos temas abordados.
O declínio da política. Ao contrário do que geralmente se pensa, este é um tema antiquíssimo, como facilmente se pode verificar lendo algumas descrições da cidade grega ou do mundo romano. Misteriosamente, contudo, cada geração redescobre-o com pasmos de grande novidade e indignação!...No nosso tempo, ele apresenta, no entanto, traços específicos que não se devem ignorar. Seja pela contradição entre os momentos de proximidade "fusional" das campanhas eleitorais e a fria distância da acção governativa. Seja pela crise da relação representativa, cada vez mais condicionada pela democracia do público e pelos movimentos da opinião. Seja ainda pela multiplicação de vectores da contrademocracia, que (em nome das promessas feitas, da participação, etc.) cada vez mais se atravessam no exercício dos mandatos. Tanto aqui como no resto, mais do que lamentar melancolicamente a crise, o interessante é observar e analisar as metamorfoses do mundo. E, se possível, passar à acção.
Valores, partidos, cidadãos. Tudo isto se mistura. Por um lado, a imensa transformação dos valores, quantas vezes a mudar de sentido por baixo do uso das mesmas palavras: basta olhar para a instabilidade do sentido do binómio conservação/mudança na sua relação com a polarização direita/esquerda, e observar como as bandeiras mudam de campo, para o perceber.Por outro lado, a letargia dos partidos, cada vez mais cartelizados no Estado e descredibilizados na sociedade, que, contudo, não descobre modo de os renovar ou - ainda menos - de os substituir. Sem esquecer os paradoxos da cidadania, cada vez mais atordoada entre as exigências de um individualismo tão triunfante como depressivo e as reivindicações de uma sociedade que já nem consegue ter uma ideia global de si própria.E tudo isto acontece num quadro de tensões entre os valores da globalização mundial e os da fragmentação do vivido. Em que a implosão partidária se anuncia nos escassos cerca de 15% de europeus que respeitam os partidos políticos. Em que os cidadãos se assumem cada vez mais como consumidores que recorrem ao registo expressivo-mediático dos seus problemas, para contornarem os impasses da mediação representativa da sociedade contemporânea.
A capitulação. Claro que há responsabilidades, palavra que hoje se usa tão pouco, substituída que tem sido pelo carrossel dos bodes expiatórios e pelo ilusório conforto da "transparência". E as responsabilidades vêm com o voto, é preciso não o esquecer, por muito que elas se acomodem hoje ao "passivismo" dominante, essa metamorfose contemporânea do conformismo que Emmanuel Todd tão inspiradamente definiu como o "entusiasmo na submissão ao destino".Foi aqui, na responsabilidade, que houve capitulação. Por isso, a democracia se tornou mais universal na forma, mas mais residual no conteúdo. Por isso, a Europa cresceu em dimensão, mas declinou em capacidade de acção e em importância no mundo. Por isso, ela se encontra agora no fio da navalha entre a urgência de um federalismo que lhe dê força económica e um proteccionismo que antecipa um atribulado regresso das nações. Por isso, o liberalismo se impôs como uma cultura ideológica homogénea, que é uma ilusão separar em vertentes distintas (económica, política e moral), uma vez que em todas elas são os valores da sociedade de mercado os operadores da sua eficácia.
O desafio. O grande desafio, agora, é o de conseguir definir uma política mundial para a economia global. Talvez a crise acabe por ajudar, dada a sua dimensão planetária. Mas fazem dramaticamente falta - quer em termos mundiais quer em termos europeus - os instrumentos institucionais que nas últimas décadas foram tão repetidamente reclamados como ignorados pela generalidade dos líderes políticos que, ao especializarem-se na arte da "fuga-para-a-frente", conduziram o mundo à beira do abismo em que ele se encontra. Estamos talvez num daqueles momentos em que, como há dias dizia Eduardo Lourenço, todos ganharíamos se a política deixasse cair a sua máscara de alegre comédia, e se assumisse como tragédia. Talvez essa mudança ajudasse a reinventar o sentido de responsabilidade, individual e colectiva, que a situação actual urgentemente reclama.
Artigo publicado hoje no DN - aqui