Rodrigo Costa
Vêm, lá desde mo horizonte, as ondas que apagam outras ondas e vêm naufragar as marcas inseguras na areia, como marcas da infância inocente, nem sempre apetecida; doendo-nos memórias que o arrependimento não esquece, porque ninguém consegue arrepender-se de ter nascido; porque aí é escrita a primeira falácia da democracia, e as marcas –humanas, inseguras– estão condenadas ao desaparecimento sem serem esquecidas.
As vagas sucedem-se, de areia em areia, no mesmo sedimento, porque o Humano se mantém como no princípio: de obsolescência em obsolescência, incoerente e déspota; o pensamento inconsequente e impuro; embriagado de esperança, no desespero da tecnologia que maquilha a Espécie –vejam lá!– mais próxima do suicídio… Com telemóveis de última geração; pillings que corrigem excessos, que afectam mas sem o risco de melhorarem o cérebro; que os indecisos podem mudar de sexo, sem terem que mudar de parceiro, de ideias nem de roupa; que o virtual garante todas as fantasias e todos os encontros a quantos não conseguem tê-los nem encontrar-se na realidade.
Agora, que, através do voto, pode legitimar-se a manutenção da mentira, o cansaço conduz-nos à verdade e à derrota. Contrariado, sem tempo nem saída, o Instinto só aparentemente desfalece, mas porfia: no álcool, na droga, no suicídio, na eutanásia e no aborto. Quando o Instinto é a trave segura da Vida, instintivas, as pessoas discutem o direito à desistência. Fartas, necessitadas e cansadas do lusco-fusco sem perspectiva, rejeitam sofrimentos sem recompensa e temem a responsabilidade, a dor e os abandonos.
Percebemos, então, que, de qualquer estrato e de qualquer idade, todos somos escora de um império em ruínas, porque o progresso nunca será o prometido, e as ascensões não fazem mais que vítimas, porque a sobrevivência e a subida não são alimentados, em regra, por princípios; e, querendo ser apenas abastados e célebres, aniquilamos e aniquilámo-nos, porque a Sociedade, como projecto que não é comum nem é sério, impõe ritmos e separações com o recurso aos antidepressivos. E a psicopatia, a má-fé e a ignorância, com mestrado e com poder, decidem sobre o rumo de Deus, das coisas e das criaturas, sem que alguém se aguente alheado de si e sem ter quota-parte, consciente e sensível, na construção do grupo e do espaço em que se integra.
Poderia dizer-se, apesar, que quem pôde chegar aos privilégios ter-se-ia salvo, justificando e poupando os descendentes e tendo-se tornado em mais de mandar do que de obedecer; com todas as horas como horas esperadas e todos os minutos como o tempo exíguo para louvar a felicidade imensa. Mas não. Os gozos, os dramas, as dúvidas e os esforços desgastam. As obrigações e o esquecimento deixam-nos, e à descendência, periclitantes, tensos e incertos; com um olho na rua e outro olho no beco, por ser nos esconsos que a salvação se ganha, concluindo-se, portanto, que as sociedades são a selva injusta onde o predador e a presa são interessada e estrategicamente demarcados e benzidos, salvo quando a hora, a excepção e o elemento servem as seitas –porque de seitas se trata o comportamento dos círculos que não admitem a dignidade de quem quer fazer uso, legítimo e prometido, da autonomia; que negam o reconhecimento das capacidades a cidadãos que, sem estúpidas marés continuadamente contra, poderiam dar contributo, o veneno, porém, porque provém de estranhos à família.
Se os caminhos já estão programados, os grupos e as sabedorias escolhidos, por que razão, sem que assista o direito à escolha, se há-de querer um filho –corrupto: activo, passivo ou obrigado–, condenado a viver num contexto de jogatina?!...
Como prova de potência e de fertilidade? Como ponto de referência fulcral da felicidade completa dos casais realizados? Como esperança de consecução ou continuação de objectivos perdidos ou interrompidos pelos progenitores? Como grude, hipotético, de uma relação-craquelée… ou porque o Instinto é o melhor aliado na adequação ao sistema? Poderiam as instituições manter o logro?... O Estado existiria e viveria de quê? Quem é que ouviria ao Papa –ou a outro indivíduo qualquer– aceitar, aceitar-se, assumir e assumir-se como representante de um Deus que, de facto, não conhece, e levar uma vida que Cristo –que não inventei nem existiu nababo, guio-me pelo que está escrito e dito– repudiaria? Quem, melhor, para combater o aborto, do que o chefe de uma organização que recebe reis ditadores e que sustém o sémen, o desperdiça na masturbação, na homossexualidade e na pedofilia, ou o gasta nas filhas e nas mulheres dos outros?... Deus deu-lhes o pénis para mais que urinar, ou gastaria a mesma matéria com as santas.
Infelizmente, pouca gente interrompe a gravidez por reflexões profundas; por interesse dos filhos, mas por interesse próprio. Como, por interesse próprio, se esgadanha quem quer que, mesmo sem condições, as criancinhas nasçam: com ou sem saúde, com ou sem babysitter; com ou sem infantário; com ou sem amor, sem mãe… Talvez, até, eternos segregados –excluídos, é o termo em voga–, que, na corrente do tempo, entre prejuízos e proveitos, serão depositados em lares sem condições nem afecto, ou ao relento ou em salões de palácios sem festas, consumidos pelos dias amargos do regresso.
Pergunto pela razão da água-benta e do pecado da origem, e os ladrões de todas as infâncias, saboreando o travo do último ludíbrio, só me dizem ser crime impedir o nascimento às criaturas; que a vontade de Deus tem que ter cumprimento, porque o curso da Vida não pode ser interrompido. E eu digo que o Deus de que padecem não deixou outra escolha, e que apenas agora é possível fertilizar in vitro –também sem autorização da vítimas–, fracassando a razão para o primeiro pecado instituído e para a indiciação e a arguição dos inocentes que carregam, indefesos, o crime que ninguém terá cometido, porque foi o Deus deles quem jogou e perdeu. De tal modo, que o Mundo, onde toda a felicidade seria possível –essa coisa da Alice–, se tornou a felicidade aparente de poucos e o feudo de difícil habitabilidade, porque Deus é satírico –valha-nos isso– e traçou os caminhos de forma que convirjam, sendo penoso observar o esforço dos que procuram ter tudo e que acabam expostos e prensados pela ambição sem tempero.
Que diz ou o que faz tal Deus –ou o que pensam eles –, quando a anormalidade, detendo poderes, coarcta e ostracisa e impõe, interessada e decretadamente, todas as obediências, como se cada qual não tivesse mais que o lugar reservado sob o jugo? Por que razão as mães não podem decidir do útero, se os pais decidem sem consulta, como se a coisa só tivesse vida dez ou doze semanas depois e os testículos ficassem isentos da responsabilidade imposta ao ventre, enquanto outros, nem sequer afins, jogam todas as vidas sem que elas, por qualquer ligação, lhes pertençam?...
A Vida nem começa nem acaba. Tem estádios. A Vida é vida desde o primeiro dia. Assim a borboleta é desde a larva, e a larva desde o ovo, e o ovo desde a matéria dos confins da Vida… Eu sou a criança e o girino, ou o pai era pai de coisa nenhuma e, na conversa, seria só autor de perdigotos.
Agora Deus… O Outro. A Energia que não tem culpa; que não tem nem igreja nem subterfúgio; que vive nos espaços abertos; não restringe audiências nem delega a palavra. Nem rei nem fautor do Universo, por ser Deus, Energia, o Universo mesmo.
O outro é o que inventou e condenou a cópula –de que isentou Maria, conspurcando as outras– e condenou o aborto; que precisou do Adão do Diabo e da Eva; que envenenou a maçã e a árvore, e que obriga ao baptismo, para redenção, os seres sem consciência nem voz para aceitar ou recusar as vontades… Esse Deus mitológico que, em Abraão, duvida de Si mesmo e que, impotente ou sado-filicida, permite, à Igreja, crucificar-lhe e agonizar-lhe o Filho, sofrido, de aluguer, pela mesma Maria e por José, e sem que nenhum dos três tivesse pecado, porque o pecado, por Outrem inventado, sobreviver-lhes-ia.
O Outro, é o Deus isento e verdadeiro; o Engenheiro que deixa, ao escorpião, a dignidade e o suicídio, quando a esperança é o cerco de fogo…
artista plástico