01/07/2018

Retalhos, simplesmente




António Fernandes 
Em bom rigor um retalho é um pedaço de qualquer coisa material que sobrou ou, que por sua vez, foi cortado. 

Mas, em sentido figurado, também pode ser um pedaço imaterial de algo. Da vida, por exemplo. Ou; da memória; de um conto; da nossa História coletiva; ou até, pequenos pedaços de um sentimento comum associado a um trabalho meritório em prol da comunidade!

Para o caso, o retalho que trago à liça é o retalho material. 

Aquele pequeno pedaço de tecido com que se faziam as mantas de retalhos. Uma tarefa de que as mães de então se encarregavam para suprir carências financeiras de aquisição de aconchegos para o leito aonde repousavam os seus.

Ou seja; juntavam-se pequenos pedaços de tecido, - os retalhos -, enrolavam-se, e depois de enrolados entrelaçavam-se uns nos outros em forma de pequenos quadrados e coziam-se com fio de linho até atingirem a dimensão necessária.

Havia também a manta confecionada em teares de madeira por tecedeiras que faziam dessa arte uma forma de vida nos tempos disponíveis para ajuda do sustento do lar.

Era assim que se confecionavam as mantas que cobriam o corpo deitado sobre a palha das gentes pobres nas noites de frio dos invernos rigorosos de então em que o vento gelado que entrava pelas frinchas das janelas e das telhas mais os buracos das paredes, gelava corpos que se aqueciam uns aos outros e sobre si enroscavam as pontas soltas das mantas. 

A manta foi o aconchego de famílias numerosas durante décadas pese o facto de nas costuras que uniam os diversos retalhos haver condições propicias para que as pulgas e outras pragas existentes no tempo devido à inexistência de condições de higiene pessoal povoavam as citadas costuras aguardando a noite para se alimentarem do sangue das gentes que as mantas aqueciam.

Estes eram os retalhos de um tempo com imenso tempo preenchido de segundos em que a dor era partilha quotidiana porque a vida era feita de tempo com tempo sofrido do nascer ao por do sol e a noite a zona escura da memória tão ansiada.

No tempo do presente não há muito tempo para o tempo que uma manta de retalhos leva a ser confecionada e muito menos tempo há para andar a colher retalhos materiais sustentados por outros retalhos de valor estimativo superior e tidos por retalhos imateriais.

A complexidade envolvente ao exercício da confeção de uma manta que havia sido feita e que por motivo diverso terá sido desfeita é de um malabarismo desbragado e de exercício contorcionista desajustado. Ao tempo e á compreensão.

Talvez por isso, no tempo de hoje, não haja paciência para rebuscar nos tempos idos as experiências que fazem com que o hoje exista.
Talvez por isso, no tempo de hoje, o egocentrismo exacerbado e redundante, não tenha a paciência de discernir entre o bem e o mal. Entre o positivo e o negativo. Entre a razão e a presunção.

Talvez por isso, os elos que juntam a corrente daquilo que tem sido o conhecimento nos domínios da evolução e da inovação mostrem sinais evidentes de corrosão mental em que o discernimento se esvai em frivolidades.
Talvez por isso, a seletividade mental se encontre em atrofia galopante, incapaz de olhar para além dos limites do seu espaço circunscrito a interesses.

Talvez por isso, o presente seja aquilo que é:

- Um muro que separa o passado do futuro aonde a miopia política levantou sombras que impedem que a luz da História abra caminhos de futuro com horizontes desemparedados de preconceitos e muito menos de verdades absolutas!