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Tereza Halliday |
À entrada do
consultório, um anúncio luminoso dava o tom da filosofia vigente no recinto:
“Bombom fura o dente e dói”. Nenhuma consulta estava completa sem detalhadas
explicações de anatomia bucal, prevenção de cáries e de gengivites aos pacientes
e seus acompanhantes adultos, apontando detalhes num modelo tridimensional da
arcada dentária. Educação sempre foi sua preocupação maior, fiel à estirpe de
sua família que deixou marca no ensino de qualidade com o saudoso Instituto
Brasil, das famosas “Irmãs Mousinho”.
Aluna da Escola Normal,
na década de 30 do século XX, certa vez, ia por uma calçada quando um ciclista
tentou agarrá-la. Deu-lhe um tabefe e disse: “Agora vou lavar a mão que sujei na
sua cara”. Mulher à frente do seu tempo, Dulce foi das poucas de sua geração a
concluir curso superior. Quando dentista de posto de saúde, propôs sistema de
odontologia preventiva que beneficiaria muitas crianças pobres e baratearia o
custo da máquina estatal de atendimento. Foi acusada de comunista. Naqueles
tempos, quem demonstrasse empatia pelos pobres, mesmo baseado em princípios
cristãos, era estigmatizado como “vermelho”.
Dulce era
apaixonada por educação, esportes e o Sport Club do Recife. Amada por muitos
porque sempre trabalhou com amor; detestada por alguns porque não tinha papas na
língua. Não poupava enrolões, fossem dentistas, médicos, políticos, encanadores,
eletricistas, advogados... Aliviava os medos de seus pequenos clientes,
estimulava tanto a prática de esportes como da higiene bucal, dava picolés de
consolo, conselhos não odontológicos e valiosas dicas para trabalhos escolares.
Jamais interrompia uma consulta para atender ao telefone. Sempre lavava bem as
mãos antes de tocar na boca de um paciente. Passava carão com a maior
autoridade, mas nunca estava de cara feia. Certo cliente de cinco anos de idade
trouxe uma flor arrancada do jardim para dar-lhe de presente. Agradeceu
efusivamente e logo prendeu a papoula vermelha no cabelo, para encantamento do
presenteador. Pacientes tentavam espichar o atendimento pela adolescência a
fora, mas um dia, o destino biológico os desqualificava para permanecer sob seus
cuidados. Anos depois, voltavam ao consultório trazendo convites de formatura e
casamento, ou os próprios filhos para serem bem tratados. Essa mulher de fibra
partiu neste mês de abril 2014, deixando centenas de ex-pacientes a relembrar
“Tia Dulce”, sua competência, senso de humor e generosidade.