24/02/2015

Três meses de prisão. Não, não e não, afirma Sócrates



José Sócrates está preso há três meses e assim permanecerá pelo menos mais três. Fisicamente encontra-se atrás das grades em Évora, mas tem feito chegar as suas palavras ao público em geral, através dos jornais e televisões. Nas sete mensagens que enviou, entre cartas, declarações e entrevistas, a palavra que mais usa é "Não" - 91 contra 5 "Sim". Logo a seguir à negação,  vem o condicional - "Se". Mas, até agora, nunca utilizou a sua palavra preferida.
Não, se, com, minha, meu, mas, como, apartamento, foi, processo, nem, já, mais, justiça, facto, esta, ou, crime, prisão, eu, ser, há, isso, este, só, Paris, sem, ter, ele, pelo, essa, está, amigo, quando, onde, são, qualquer, nada, porque, prova, segredo, todo, sua, Carlos, quem, defesa, aqui, direito, verdade, Santos, Silva, muito, dinheiro, fuga, também, tenho, nunca, depois, outro, investigação, certo, preventiva, caso, contra, sobre, ano, indício, mesmo, tudo, acusação, jornais, obras, Lisboa, venda, outra, esse, bem...

Não, se, com... Não, não se trata de cantilena nem lengalenga nem trava-línguas, são as 77 palavras mais usadas pelo ex-primeiro-ministro José Sócrates nas mensagens que tem feito sair da prisão, isto é, nas cartas enviadas à TSF, Público, RTP e Diário de Notícias, na declaração ao Expresso ("Só deixa de ser livre quem perde a dignidade. Sinto-me mais livre do que nunca!") e nas entrevistas concedidas à TVI e à SIC.
No conjunto, o termo "Não" é usado 91 vezes. A sua distribuição pelas seis missivas é mais ou menos proporcional ao número de palavras de cada uma. O uso do "Não", embora pareça uma simples contabilidade, coaduna-se com a posição que José Sócrates tem sustentado face às acusações difundidas pelos "media" desde que foi detido a 21 do passado mês de Novembro, no aeroporto de Lisboa, à chegada de Paris (cidade que é mencionada 18 vezes, por causa do "famoso apartamento de luxo"), onde estava a viver praticamente desde que perdeu as eleições para o PSD de Passos Coelho.
Na carta à TSF e ao Público, em que refere ter estado "cinco dias fora do mundo " - desde a detenção até à ida para Évora -, usa o "Não" três vezes mas para servir afirmações: Não espero que os jornais denunciem o crime [de violação de segredo de justiça]; Não raro a prepotência atraiçoa o prepotente; e Não tenho dúvidas que este caso tem também contornos políticos. Sócrates está apenas focado em atacar as fugas de informação "selecionadas pela acusação" para anunciar e justificar próximas mensagens.
O número de "Não" sobe para sete na resposta à RTP, através de um carta ditada por telefone ao seu advogado, João Araújo, a 28 de Novembro - mas com a indicação de ser divulgada só depois de terminar o congresso do PS. É a partir daqui que a partícula negativa começa a ser usada, sobretudo, com o efeito de negar as acusações que vão sendo tornadas públicas.
A televisão pública pusera no ar, nessa sexta-feira, uma reportagem sobre o apartamento de Paris e a compra e venda de outros que envolviam a mãe de Sócrates. Foi a primeira vez que viu televisão, desde que fora detido. O primeiro "Não" da carta à RTP volta a ser afirmativo - (...) não lhes faço o favor de ficar calado -, o segundo é um irónico - se não for pedir demais -, o terceiro é para apontar um "vício" à acusação e aos seus veículos ("alguns jornalistas"): se alguma coisa não bate certo com a tese, omite-se a dissonância


Os restantes "Não" da carta à RTP1, destinada a revelar "a verdade dos factos", servem para contrariar partes da reportagem, no que respeita à venda, pela sua mãe, de dois apartamentos e não um como afirma a peçapor um preço total de 100 mil euros e não, como afirmam, um por aquele preço. O penúltimo "Não" é para reforçar os dois anteriores - Não houve, então, inflação de preços -, o último é uma queixa/acusação: não tendo vislumbrado na peça uma única prova.
Na carta dirigida ao Diário de Notícias, no dia 4 de Dezembro, as partículas negativas são usadas para marcar a ironia do texto: Não, já não és um cidadão face às instituiçõesa tua palavra já não vale o mesmo que a nossa. Pela primeira vez nestes seus escritos em análise, surge a palavra "Sim" - aliás, é a única missiva que tem menos "Não" (4) do que "Sim" (5), os quais aparecem precisamente com a mesma intenção irónica. Um dos "Sim" é até um reforço de um não: Sim, não se metam nisto.
É na entrevista que dá à TVI, a 2 de Janeiro, que Sócrates utiliza o maior número de "Não" (49) e volta a não usar a palavra "Sim". Trata-se do maior texto que escreveu nesta troca de questões com órgãos de comunicação social: tem mais de três mil palavras, enquanto as respostas enviadas à SIC um mês depois têm cerca de duas mil e as cartas andam um pouco acima da centena.
No preâmbulo à entrevista à TVI, no qual expõe a situação em que se encontra como preso preventivo com "limitação infundada e desproporcionada de direitos fundamentais" e se revolta, uma vez mais, contra a violação do segredo de justiça, responsabilizando os que, tendo o processo à sua guarda, não o guardaram como deviam (...) não estiveram à altura das suas responsabilidades e não fizeram bem o seu trabalho. As restantes partículas negativas cumprem, uma vez mais, a função de negar, no caso as acusações que recaem sobre o ex-primeiro-ministro quanto à movimentação de dinheiros cuja proveniência está mal esclarecida.
Nesse texto de Janeiro, verifica-se dois momentos de uso do "Não" de forma mais coloquial para vincar que não foi confrontado com provas no interrogatório conduzido pelo juiz Carlos Alexandre, Não, não fui, e para responder à pergunta "É verdade que sabia que estava a ser investigado? Desde quando?" Não, não sabia, não fazia a mínima ideia (até às buscas em casa do meu filho).
Nas respostas dadas à SIC, divulgadas a 3 de Fevereiro, e que também não regista um único "Sim", o uso da partícula negativa (28) só difere das enviadas à TVI na parte da intenção coloquial: Não, não senti que os amigos se afastaram), de resto serve para refutar acusações ou desmentir as versões tornadas públicas através dos "media", as tais fugas de informação de que Sócrates se queixa e quer combater, tendo-se por essa razão feito assistente de um processo.
Alguns exemplos: não fugi!; não ia a sair!; não era preciso ser adivinho (...) para calcular que havia um processo contra mimMas não disfarcemosE não é só a violação do segredo de justiça, são as mentirasE não aceito a confusãoNão admitonão constitui crimenão significa que não tivesse um horizonte financeiroé suposto investigar crimes e sustentar-se em factos, não em opiniões sobre a vida dos outros.
Resumindo, a palavra "Não" é usada 91 vezes, logo a seguir vem a conjunção ou pronome "Se" (com 65), seguindo-se Com, Minha e Meu (repetidas 42, 40 e 38 vezes, respectivamente). Sócrates fala em apartamento (o cerne de algumas questões) por 31 vezes, escreve a palavra Justiça 24, crime e prisão 22, segredo e Carlos (do seu amigo Santos Silva) 15, direito, verdade e dinheiro 14... Mas nem uma vez usa a palavra que, de regresso a Lisboa para se envolver de novo na história do país, trouxe para a política portuguesa, uma palavra que saltou da literatura para o discurso político e cuja teorização está a dar os primeiros passos. Da "narrativa", nestas narrações do ex-primeiro-ministro José Sócrates, não há registo. 

Anabela Natário

Expresso